quinta-feira, abril 23, 2009
autores
Padre António Vieira
Sermões
Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal
contra as de Holanda
Pregado na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, da cidade
da Baía, com o Santíssimo Sacramento exposto,
sendo este o último de quinze dias, nos quais em todas
as igrejas da mesma cidade se tinham feito sucessivamente
as mesmas deprecações, no ano de 1640.
Exurge! Quare obdormis, Domine? Exurge et ne repellas
in finem. Quare faciem tuam avertis, oblivisceris
inopiae nostrae et tribulationis nostrae? Exurge, Domine,
adjuva nos et redime nos propter nomen tuum.
I
Com estas palavras piedosamente resolutas, mais
protestando que orando, dá fim o Profeta Rei ao Salmo
XLIII – salmo que, desde o princípio até o fim, não parece
senão cortado para os tempos e ocasião presente.
O doutor máximo S. Jerónimo, e depois dele os outros
expositores, dizem que se entende a letra de qualquer
reino ou província católica, destruída e assolada por inimigos
da Fé. Mas entre todos os reinos do mundo a nenhum
quadra melhor que ao nosso reino de Portugal;
e entre todas as províncias de Portugal a nenhuma vem
mais ao justo que à miserável província do Brasil.
Vamos lendo todo o salmo, e em todas as cláusulas
dele veremos retratadas as da nossa fortuna: o que fomos
e o que somos.
Deus, auribus nostris audivimus, Patres nostri annuntiaverunt
nobis, opus, quod operatus es in diebus eorum,
et in diebus antiquis. Ouvimos (começa o Profeta) a
nossos pais, lemos nas nossas histórias, e ainda os mais
velhos viram, em parte, com seus olhos, as obras maravilhosas,
as proezas, as vitórias, as conquistas, que por
meio dos Portugueses obrou em tempos passados vossa
omnipotência, Senhor. Manus tua gentes disperdit, et
plantasti eos: afflixisti populos et expulisti eos. Vossa mão
foi a que venceu e sujeitou tantas nações bárbaras, belicosas
e indómitas, e as despojou do domínio de suas
próprias terras, para nelas os plantar, como plantou
com tão bem fundadas raízes; e para nelas os dilatar,
como dilatou e estendeu em todas as partes do mundo,
na África, na Ásia, na América. Nec enim in gladio suo
possederunt terram, et brachium eorum non salvavit eos:
sed dextera tua et brachium tuum et illuminatio vultus
tui, quoniam complacuisti in eis. Porque não foi a força
do seu braço, nem a da sua espada, a que lhes sujeitou
as terras que possuíram e as gentes e reis que avassalaram,
senão a virtude de vossa dextra omnipotente e a
luz e o Prémio supremo de vosso beneplácito, com que
neles vos agradastes e deles vos servistes. Até aqui a relação
ou memória das felicidades passadas, com que
passa o Profeta aos tempos e desgraças presentes.
Nunc autem repulisti et confundisti nos; et non egredieris
Deus in virtutibus nostris. Porém agora, Senhor,
vemos tudo isto tão trocado, que já parece que nos deixastes
de todo e nos lançastes de vós, porque já não
ides diante das nossas bandeiras, nem capitaniais como
dantes os nossos exércitos. Avertisti nos retrorsum post
inimicos nostros, et qui oderunt nos, diripiebant sibi.
Os que tão costumados éramos a vencer e triunfar, não
por fracos, mas por castigados, fazeis que voltemos as
costas a nossos inimigos (que como são açoite de vossa
justiça, justo é que lhe demos as costas), e perdidos os
que antigamente foram despojos do nosso valor, são
agora roubo da sua cobiça. Dedisti nos tanquam oves escarum
et in gentibus dispersistis nos. Os velhos, as mulheres,
os meninos, que não têm forças nem armas com que
se defender, morrem como ovelhas inocentes às mãos da
crueldade herética, e os que podem escapar à morte,
desterrando-se a terras estranhas, perdem a casa e a pátria.
Posuisti nos opprobrium vicinis nostris, subsanationem
et dirisum his, qui sunt in circuitu nostro. Não fora
tanto para sentir, se, perdidas fazendas e vidas, se salvara
ao menos a honra; mas também esta a passos contados
se vai perdendo; e aquele nome português, tão celebrado
nos anais da fama, já o herege insolente com as
vitórias o afronta, e o gentio de que estamos cercados, e
que tanto o venerava e temia, já o despreza.
Com tanta propriedade como isto descreve David
neste salmo nossas desgraças, contrapondo o que somos
hoje ao que fomos enquanto Deus queria, para que na
experiência presente cresça a dor por oposição com a
memória do passado. Ocorre aqui ao pensamento o que
não é lícito sair à língua; e não falta quem discorra tacitamente
que a causa desta diferença tão notável foi a
mudança da monarquia. Não havia de ser assim (dizem)
se vivera um D. Manuel, um D. João o Terceiro, ou a
fatalidade de um Sebastião não sepultara com ele os reis
portugueses. Mas o mesmo profeta no mesmo salmo
nos dá o desengano desta falsa imaginação: Tu es ipse
rex meus et Deus meus: qui mandas salutes Jacob. O reino
de Portugal, como o mesmo Deus nos declarou na
sua fundação, é reino seu e não nosso: Volo enim in te
et in semine tuo imperium mihi stabilire; e como Deus é
o rei: Tu es ipse rex meus et Deus meus; e este rei é o
que manda e o que governa: Qui mandas salutes Jacob;
ele que não se muda, é o que causa estas diferenças, e
não os reis que se mudaram. À vista, pois, desta verdade
certa e sem engano, esteve um pouco suspenso o
nosso profeta na consideração de tantas calamidades,
até que para remédio delas o mesmo Deus, que o alumiava,
lhe inspirou um conselho altíssimo, nas palavras
que tomei por tema:
Exurge, quare obdormis, Domine? Exurge et ne repellas
in finem. Quare faciem tuam avertis, oblivisceris inopinae
nostrae et tribulationis nostrae? Exurge, Domine,
adjuva nos, et redime nos propter nomen tuum.
Não prega David ao povo, não o exorta ou repreende, não faz
contra ele invectivas, posto que bem merecidas; mas, todo
arrebatado de um novo e extraordinário espírito, se
volta não só a Deus, mas piedosamente atrevido contra
ele. Assim como Marta disse a Cristo: Domine, non est
tibi curae?, assim estranha David reverentemente a
Deus, e quase o acusa de descuidado. Queixa-se das desatenções
de sua misericórdia e providência, que isso é
considerar a Deus dormindo: Exurge, quare obdormis,
Domine? Repete-lhe que acorde e que não deixe chegar
os danos ao fim, permissão indigna de sua piedade:
Exurge et ne repellas in finem. Pede-lhe a razão por que
aparta de nós os olhos e não volta o rosto: Quare faciem
tuam avertis?, e porque se esquece da nossa miséria e
não faz caso de nossos trabalhos: Oblivisceris inopiae
nostrae et tribulationis nostrae? E não só pede de qualquer
modo esta razão do que Deus faz e permite, senão
que insta a que lha dê, uma e outra vez: Quare obdormis?
Quare oblivisceris? Finalmente, depois destas perguntas,
a que supõe que não tem Deus resposta, e destes argumentos com que presume o tem convencido, protesta diante do tribunal de sua justiça e piedade, que
tem obrigação de nos acudir, de nos ajudar e de nos libertar
logo: Exurge, Domine, adjuva nos et redime nos.
E para mais obrigar ao mesmo Senhor, não protesta por
nosso bem e remédio, senão por parte da sua honra e
glória: Propter nomen tuum.
Esta é (Todo Poderoso e Todo Misericordioso
Deus), esta é a traça de que usou para render vossa piedade,
quem tanto se conformava com vosso coração.
E desta usarei eu também hoje, pois o estado em que nos
vemos mais é o mesmo que semelhante. Não hei-de pregar
hoje ao povo, não hei-de falar com os homens; mais
alto hão-de sair as minhas palavras ou as minhas vozes:
a vosso peito divino se há-de dirigir todo o sermão.
É este o último de quinze dias contínuos em que todas
as igrejas desta metrópole a esse mesmo trono de vossa
patente Majestade têm representado suas deprecações;
e, pois o dia é o último, justo será que nele se acuda
também ao último e único remédio. Todos estes dias se
cansaram debalde os oradores evangélicos em pregar
penitência aos homens; e, pois eles se não converteram,
quero eu, Senhor, converter-vos a vós. Tão presumido
venho de vossa misericórdia, Deus meu, que ainda que
nós somos os pecadores, vós haveis de ser o arrependido.
O que venho a pedir ou protestar, Senhor, é que
nos ajudeis e nos liberteis: Adjuva nos et redime nos.
Mui conformes são estas petições ambas ao lugar e ao
tempo.
Em tempo que tão oprimidos e tão cativos estamos,
que devemos pedir com maior necessidade, senão que
nos liberteis: Redime nos? E na casa da Senhora da Ajuda,
que devemos esperar com maior confiança senão
que nos ajudeis: Adjuva nos? Não hei-de pedir pedindo,
senão protestando e argumentando; pois esta é a licença
e liberdade que tem quem não pede favor, senão justiça.
Se a causa fora só nossa e eu viera a rogar só por nosso
remédio, pedira favor e misericórdia. Mas como a causa,
Senhor, é mais vossa que nossa, e como venho a requerer
por parte de vossa honra e glória, e pelo crédito
de vosso nome – Propter nomen tuum –, razão é que
peça só razão, justo é que peça só justiça.
Sobre este pressuposto vos hei-de arguir, vos hei-de argumentar
e confio tanto da vossa razão e da vossa benignidade, que
também vos hei-de convencer. Se chegar a me queixar
de vós e a acusar as dilações de vossa justiça, ou as desatenções
de vossa misericórdia: Quare obdormis? Quare
oblivisceris?, não será esta vez a primeira em que sofrestes
semelhantes excessos a quem advoga por vossa causa.
As custas de toda a demanda também vós, Senhor, as
haveis de pagar, porque me há-de dar vossa mesma graça
as razões com que vos hei-de arguir, a eficácia com
que vos hei-de apertar e todas as armas com que vos
hei-de render. E se para isto não bastam os merecimentos
da causa, suprirão os da Virgem Santíssima, em cuja
ajuda principalmente confio. Ave-Maria"
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