"Refinar os sentidos e alargar a imaginação é o trabalho que a arte faz"
Entrevista: Ana Mae Barbosa
O ensino da arte no Brasil deve muito à educadora Ana Mae Barbosa. Primeira brasileira
com doutorado em arte-educação, pela Universidade de Boston, EUA, ela foi pioneira em
aplicar um programa sistematizado do ensino da arte em museus, durante sua gestão como
diretora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da Universidade de São Paulo, em
1987. Por meio da metodologia triangular, como ficou conhecida a proposta, Ana Mae
implementou o ensino da arte utilizando uma abordagem com tríplice ação: o ‘fazer’
artístico; o ‘ver’, com a leitura da obra de arte; e o ‘contextualizar’, com o estudo da
informação histórica.
Com o objetivo de oferecer informações que contribuam para a realização dos trabalhos
dos participantes do Tesouros do Brasil, convidamos a educadora Ana Mae Barbosa a
falar sobre arte-educação e o ‘fazer artístico’, como processo de conhecimento e
apropriação de linguagens e conteúdos. Nesta entrevista, a ex-aluna de Paulo Freire relata
suas experiências como arte-educadora e comenta as dificuldades enfrentadas pelos
professores na ainda difícil tarefa de ensinar arte no Brasil.
O ensino da educação artística nas escolas ainda é visto com preconceito, como sendo
apenas crianças desenhando e cortando papéis?
Ana Mae Barbosa: Não, esta é uma visão do passado, do período de esgotamento da
proposta modernista para o ensino da arte. O pós-modernismo acrescentou à necessidade
de expressão também a necessidade de compreensão da arte e isto deu um novo impulso à
arte na escola. Estou terminando a análise de uma pesquisa de um ano com professores de
arte da rede pública, principalmente. Foi uma pesquisa exaustiva, encomendada pelo
Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, que produziu cinco instrumentos diferentes
para analisarmos cada professor, inclusive relatos de observação direta de sala de aula por
agentes de campo. Os resultados da pesquisa me deixaram muito entusiasmada com os
professores da rede pública. Eles potencializam qualquer material de arte que lhes é
fornecido.
Quais são os principais problemas enfrentados no ensino da arte nas escolas
brasileiras?
Ana Mae Barbosa: Verba e atualização de professores. Os educadores necessitam de
atualização constante, mas de uma atualização que olhe diretamente para eles e para as
suas circunstâncias de trabalho. Eles não precisam de cursos de treinamento para usar este
ou aquele currículo e material. Infelizmente, só se prepara o professor para usar as idéias
dos outros, não as deles próprios. E ainda reclamam que o professor está habituado a
receitas de ensinar. Acho até que as instituições públicas, especialmente as do município
de São Paulo, andam mais motivadas para a arte que as instituições privadas. Isto é efeito
dos CEUs (os Centros Educacionais Unificados são complexos educacionais
implementados pela prefeitura de São Paulo em agosto de 2003).
O que vem a ser arte-educação?
Ana Mae Barbosa: Para mim, Arte/Educação é todo e qualquer trabalho consciente para
desenvolver a relação de públicos (criança, comunidades, terceira idade etc.) com a arte.
Ensino de arte tem compromisso com continuidade e currículo, quer seja educação formal
ou informal. Arte Educação foi o termo usado por meus mestres. Eu acrescentei o hífen,
Arte-Educação, no momento em que arte era recusada pelos educadores, nos anos de sua
introdução obrigatória no currículo escolar, em torno de 1973-1974, para dar idéia de
diálogo e mútuo pertencimento entre as duas áreas. Na época, meus mestres gostaram da
idéia. Recentemente, em 2000, um lingüista nos aconselhou a usar a barra, pois este sinal,
sim, é que significa mútuo pertencimento.Tanto é assim que a barra é muito usada em
endereços de sites, quando um assunto específico está dentro de outro mais amplo. Mas
Arte/Educação e ensino de arte são faces diferentes de uma mesma moeda, a moeda
concreta da intimidade com a arte.
Arte é para sentir ou para entender? Ou os dois? Dá para se ensinar a entender arte?
Ana Mae Barbosa: Arte é cognição, para a qual colaboram os afetos e os sentidos. O
nosso sistema sensorial biológico é a extensão de nosso sistema nervoso, ao qual a filósofa
Susanne Langer chama de ‘orgão da mente’. Refinar os sentidos e alargar a imaginação é
o trabalho que a arte faz para potencializar a cognição - que é o processo pela qual o
organismo se torna consciente de seu meio ambiente. Atualmente, a abordagem mais
contemporânea de Arte/Educação na qual estamos mergulhados no Brasil é a associada ao
desenvolvimento cognitivo. Embora se verifique que a visão de Arte/Educação mais
fortemente presente no imaginário popular é a ligada à expressão criadora difusa
interpretada como algo emocional e não mental, como atividade concreta e não abstrata,
como trabalho das mãos e não da cabeça, o movimento de Arte/Educação como cognição
se impõe por aqui
Por meio dele, se afirma a eficiência da arte para desenvolver formas sutis de pensar,
diferenciar, comparar, generalizar, interpretar, conceber possibilidades, construir, formular
hipóteses e decifrar metáforas. Detesto a sentimentalização da arte na educação. Dói-me
os ouvidos escutar alguém afirmar que o objetivo da arte na educação é tornar as pessoas
sensíveis. O que é ser sensível? Fiz esta pergunta a centenas de arte/educadores
sentimentalistas e obtive respostas absurdas, desde que é ser romântico até que significa
ser dócil e obediente. Arte/educadores que querem agradar ao público de colegas usam
este artifício da ‘lamúria sensibilizante’. Tem muito Paulo Coelho na Arte/Educação.
Aliás, o autor escreveu um livro sobre teatro-educação nos anos 60.
Quando se pensa em educação artística nas escolas o mais comum é associá-la
somente ao desenho e à pintura. Por que outras expressões artísticas como a música,
a poesia e a fotografia são pouco lembradas?
Ana Mae Barbosa: Não penso que seja assim. Há excelentes experiências em música,
poesia e fotografia, se não estamos falando só de escolas em áreas de muita pobreza.
Desde 1968, na Escolinha de Arte de São Paulo, comecei a trabalhar com crianças
utilizando a fotografia. Nas escolas de zonas miseráveis no Brasil é que só se conhece o
lápis de cor e aqueles horríveis lápis de madeira, cujo maior prazer da criança é fazer-lhes
as pontas porque pintar com eles é tortura. É verdade que há um problema de designação.
Arte/Educação é vista no Brasil - da mesma forma que art education nos USA, Inglaterra,
Austrália e Canadá - como educação para as artes visuais. Temos, e eles têm também,
designações especiais para teatro-educação e educação musical. Quando queremos dizer
todas as artes usamos variadas expressões como educação para as artes ou artes na
educação. Trata-se de uma questão cultural pensar em artes plásticas quando se ouve dizer
a palavra arte. As outras expressões são mais bem aquinhoadas, são arte mas têm nomes
próprios, tais como música, literatura, teatro, dança, etc.
Como a arte educação pode contribuir com a educação patrimonial?
Ana Mae Barbosa: Não vejo a educação patrimonial como um tema separado. Incluo na
Arte/Educação o conhecimento da riqueza patrimonial histórica e ecológica, material e
imaterial.
Por Rosângela Rezende
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