“O mundo cheio de amabilidades e promessas das vidas normais. Dentro dos carros as pessoas a quem aqueles anúncios se destinavam passavam a correr, entre a casa própria e o emprego óptimo, os planos de férias de verão e o cheiro dos estofos do carro novo e a prestações. As vidas normais nunca se sentem vidas de privilégio e são tuteladas pelo medo de morrer sem conseguir tudo o que se deseja. Tuteladas pelas cautelas e as humilhações e autorizações que garantem o funcionário cumpridor, o chefe de família, a esposa exemplar, o filho diligente. Que garantem as amantes sem amor, os militantes trémulos, os tiranos de escritório, os sonhadores sonâmbulos. Peixes em cardume no aquário da cidade, devorando-se uns aos outros, nadando em grupo, em banda, todos para o mesmo lado, com medo de perder o empréstimo, o patrão, o carro, a camisola, a saúde, a promoção do dia. Vidas normais. Vidas transmitidas em diferido, amarradas por cordas de solidão e mágoa, evitando o fio do acaso, a queda sem rede, o castigo de Deus, a ira dos homens.”
Clara Ferreira Alves
in “A Pluma caprichosa I” crónicas Publicações D. Quixote, 2001, Lisboa, Portugal.
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