segunda-feira, janeiro 01, 2007

Os Gatos e a Cidade

"Os gatos e a cidade"

de Jorge Salgado Simões


"Queres uma cidade nova? Queres uma cidade viva? Podes tê-la em qualquer lugar. Podes escolher morar onde quiseres: num centro cujo prazo de viabilidade há muito expirou; numa qualquer nova centralidade ditada por um qualquer equipamento ou supermercado; ou na periferia, junto ao campo, naquela nesga de ruralidade que subsiste na envolvente da cidade. Mas tudo é cidade.

A cidade do centro, a que cai, é a que mais me preocupa. É aquela que escolhi para viver porque desdenho todas as outras. E porque gosto de sofrer, é óbvio que gosto. Não pode haver outra explicação. É tudo mais caro e eu não tenho dinheiro. Demora tudo mais tempo, do qual eu não abro mão. O espaço é mais condicionado, a vista não é simpática, a vizinhança é simpática mas característica, as ruas estão sujas, não têm calçada, nem alcatrão, mas apenas uma mistura das duas que não é coisa nenhuma, a iluminação vai falhando, o lixo vai-se acumulando e os ratos tenho-os como vizinhos.

Onde há ratos há gatos, e eu gosto de gatos. Os gatos circulam livremente por telhados e logradouros. Se calhar é por isso que eu gosto desta cidade, seja ela em Torres Novas, em Coimbra ou no Porto. Saber que os gatos aparecem, que podemos contar com eles para um olhar cúmplice ou um afago sentido. Os gatos não gostam da cidade nova. Acham-na demasiado estéril, como se isso fosse possível. Mas tem de facto pouco cheiro, pouca cor, poucos motivos de interesse.

A minha cidade tem de dizer qualquer coisa. Olhando para uma parede usada ou para o perfil de uma rua estreita, temos de poder ver uma história, uma imagem passada há tento tempo, uma aventura, uma qualquer banalidade, ou o quer que seja.

Dizem agora que não. Que o prazo de viabilidade dos centros históricos das cidades portuguesas foi ultrapassado. Mas quem é que ditou esse prazo? Serão os mesmos que os condenaram no passado? Os mesmos que contribuíram para esta singularidade portuguesa de estarem as periferias urbanas mais sujeitas à pressão imobiliária, contrariando a velhinha teoria dos lugares centrais? Não se enganem. Esta cidade pode ser velha e nova ao mesmo tempo. Deixem-na renovar-se.

Definam-se os perímetros e criem regras facilitadoras das intervenções. Atribua-se unidade ao espaço definido: uma tipologia de calçada, de iluminação, de sinalização, de equipamento urbano. Só isto ajudará para que mais pessoas circulem a pé pelas ruas, para que haja maior identificação colectiva com o centro e uma valorização do espaço.

A cidade são as pessoas a andar nas ruas. Tem de ser agradável andar nas ruas. Limpem as ruínas, obriguem os proprietários a vender, promovam a sua posse administrativa, expropriem, façam obras coercivas, apresentem a conta, façam o que quiserem, mas arranquem esta cidade das mãos alimentadas por um Estado que se habituou a alimentar este estado de coisas.

Libertem-se edifícios para equipamentos, lojas, galerias, experiências empresariais, cultura, actividades cívicas, habitação social, habitação com preços controlados, habitação de luxo ou só habitação. Seja para o que for, libertem, valorizem e usem-na.

A periferia não resistirá se o centro não viver. A cidade nunca será cidade, se não funcionar com todos os seus órgãos. Não crescerá. Pode engordar, inchar e aumentar. E ainda assim, não crescerá.

Ela não é da minha responsabilidade. Nem tua, nem do outro, nem do proprietário ou do inquilino. Ela não é responsabilidade da Junta, da Câmara ou do Estado. Ela é responsabilidade do Estado, da Câmara e da Junta. Do inquilino, do proprietário, do outro, tua e minha. Lamúrias, pesares ou considerações avulsas.

Podia continuar, mas já não vale a pena. Queres uma cidade nova? Queres uma cidade viva? Tens a certeza de que ainda a queres?"

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