terça-feira, janeiro 23, 2007

Alvaro Lapa

JL
Por Rocha de Sousa


A arte para não enlouquecer

Álvaro Lapa, um nome decisivo na arte portuguesa contemporânea, aparentemente reservado, que se exprime, pela pintura e pela escrita, à margem dos vastos campos de mediatização, dos palcos públicos, da ostentação do êxito, recebeu em 2004 o Grande Prémio edp e tem agora exposta, nos Pavilhões do Museu da Cidade de Lisboa, uma importante antologia de várias períodos da sua obra. Por vezes há decisões tardias ou tendenciosas nestes domínios e o caso de Álvaro Lapa é disso simbolicamente trágico: apesar de Moisés não haver acedido à montanha, como diz o povo, o certo, e ao contrário da frase simbólica, a verdade é que também a montanha não foi ter com Moisés, e assim, no vazio dos actos, o artista de que se fala aqui acabou por falecer entretanto, em 2006, quando ainda decorriam os trabalhos de preparação da presente exposição e do excelente catálogo, no qual se abordam pinturas ditas «paisagísticas», «obras-com-palavras», e um volume dedicado a preciosos textos do autor. É preciso visitar a exposição com a consciência deste «atraso», sentindo o cuidado posto no arranjo dos pavilhões, sobretudo o Branco, e atravessando os jardins que pacificam a morte e revestem de silêncio os túmulos provisórios que acomodam, conferindo-lhes visibilidade, os restos antológicos do autor consubstanciado na convocação física da sua obra, presença enfim cuidada com dimensão e respeito, entre janelas de grandes vidros e pavões, lá fora, em deriva pela relva pujante.

Impressões de uma visita.

Enquanto me aproximava do Pavilhão Branco, fotografando fragmentos antigos de molduras em cantaria e um leão deitado nas folhas de plantas que vivem rente ao chão, pensava que este era o lugar próprio, poeticamente legítimo, para revisitar e homenagear o pintor e poeta das impressões lusitanas. Entrei para um mundo luminoso e iluminado, onde a série «paisagística» se articulava nos largos espaços do pavilhão. Cada peça bem destacada à escala humana, suportando assim a acentuada altura das paredes alvíssimas, era levemente aquecida pelo tipo de projectores envolventes.Revendo a intrigante pintura que Lapa intitulou «Homem sem esforço, sem propósito, sem utilidade» (1968) recomecei a travessia do artista no espaço do absurdo e a sua necessidade tanto de questionar cada opção como de afirmar o que há mesmo para afirmar, contra todos os silenciamentos. «Em que consiste imaginar? Como é possível a imagem, enquanto determinação geral de um conteúdo concreto do imaginar: como é viável equacionar a liberdade com o aleatório de qualquer materialidade conteudística? Quais as relações entre a sobredita liberdade – o próprio ser da obra, sua dedução temporal – e a sua representação sistemática, e o seu inventário histórico?»

Ao se pensar em percursos reflexivos tão densos como este, Lapa já entrara num labirinto terminal, sem esforço, sem propósito, percebendo a inutilidade das significações do devir. Contra os iludidos do naturalismo, ele dizia para que recalcassem toda a esperança, «os incómodos da percepção» na improvável realização do que somos e das coisas que nos apresentam, os objectos diferentes do que se vê neles, invenção dos percursos que simulam a dolorosa emigração para lugares longínquos. Escrevendo sobre a própria escrita da pintura, evocando Bosch ou o «nosso» Gil Vicente, abordando a sua obra O Tentador, deixou redigido que, em termos de linguagem, a dele era mais contemporânea daquelas formas, e mais responsável, pelo acontecimento dos símbolos – «que nunca serão figuráveis uma vez por todas se da pintura (apenas) se dispõe.»1

Fecho o livro destes vocábulos de súbito paralíticos e passeio um pouco ao lado das obras que se intitulam (aleatoriamente?) «Passeio». E as obras que ostentam esse título, as mais longas, recortadas por formas escuras, entre restos gestálticos de prados, de céus, sombras perto, parecem formular bosques de uma nossa qualquer errância, sem propósito, sem utilidade. Entre muitas outras hipóteses formais, que opacificam estranhas imagens, observo, caso a caso, as propostas ditas «Campéstico», o primeiro de 1983-1984 (I).

A minha liberdade é quase total: paisagísticas, as contingentes imagens deixam-me frequentemente em lugares insignificantes onde já me senti, no Alentejo, nas anharas de Angola, nas velhas ancoragens de máquinas agrícolas de outrora.No Pavilhão Preto, a boa ordenação das peças cuja génese está no número ou na letra e na palavra, a maior parte das pinturas reflecte manipulações digitais dos respectivos códigos, saindo do quadro para tecidos esticados e já em forma de frases. Como: «O sono e a morte serão equiparados. O homem aprenderá a morrer».Mundo literário inquietanteSe o único problema filosófico se limita ao suicídio, como anuncia Camus na abertura do famoso «Sísifo», também será verdade que o homem, despojado de toda a consciência estética e funcional, estará confrontado com a loucura. A actividade plástica constitui, nas clínicas psiquiátricas, a mais surpreendente manifestação do humano ao desejar saber-se, isto é, sobreviver.É em parte por isso que Álvaro Lapa indaga tanto o não sentido das coisas e a ressurreição dele através da arte. «É na verdade um dos enigmas da arte e um sinal do poder da sua logicidade, que todo o rigor lógico radical, até aquele que se chama absurdo, tem como resultado algo que se assemelha a um sentido. Mas isso não é tanto a confirmação da sua substancialidade metafísica que se apodere de toda a obra completamente elaborada, quanto a confirmação do seu carácter de aparência pelo facto de que não pode escapar à sugestão de um sentido no seio do absurdo.»2Em «Atitudes litorais» (1984) o artista escreve: «Quando se interroga didacticamente uma tradição omite-se o presente se o houver e é talvez por isso que a dimensão didáctica da pintura se tornou invariavelmente abstracta. Ou seja linguística, verbal e verbosa como em qualquer aula ocidental dualista». Esta questão é relevante e trouxe para o domínio do pensamento plástico um vocabulário que não lhe pertence. São os poderes culturais contemporâneos que se introduzem nesta área específica. «A tirania é a do significante temporário onde toda a assimilação é interdita». «A linguagem que descreve o corpo afectado é quando muito designativa e, se se quiser expressiva, incorporar-se-á na obra, no procedimento da obra, significar-se-á (e não significará). Nós não sabemos o que a pintura, a arte em geral, significam, sequer como sentido oculto. Podemos a esse respeito contar histórias, ou deixar contar»3 Álvaro Lapa, apesar da sua erudição em campos como o da estética e da escrita, aproxima-se muitas vezes do primeiro buraco negro que encontra e tem a lucidez, por instantes, de que a impossibilidade de significar não lhe deixa grandes alternativas. «Uma teoria é uma prudência com que não me identifico».Será em parte por isso que nos deixa imprudências como esta:«O que simboliza a arte senão a alegria e a tragédia?/ Quem não considera compreende a arte sem distância./ O não-ser corresponde à imaginação que trabalha e ao animal./ Emociona-me a palavra lenda como sentido do que faço./ Narcisismo do indivíduo ou da Natureza tanto faz./ Entre a elite e a claque a escolha impõe-se./ Trabalhamos em ultrapassar os nossos limites ou trabalhamos em amar» 4


Notas: (1) Percorrendo os meandros da questionação de Álvaro Lapa, em textos agora publicados. (2) Do texto para a sua própria exposição de 1977, na Galeria Nacional de Arte Moderna. (3) Da conferência proferida no âmbito da exposição «Artes Litorais». Faculdade de Letras de Letras de Lisboa, 1984. (4) Do «Comentário», texto para a sua exposição de 1985.ÁLVARO LAPA. Museu da Cidade ao Campo Grande. Horário: de terça a domingo: 10h às 18h, até 28 de Janeiro

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